terça-feira, 25 de setembro de 2018

Hierarquia dos Mandamentos


No decorrer da história do cristianismo os cristãos têm entendido que os mandamentos contidos nas Escrituras estão num mesmo patamar de valor, mas eu gostaria de propor algo diferente. A meu ver, colocar os mandamentos num mesmo patamar de valoração tem sido um dos principais erros da Igreja e tem sido o principal responsável pela desvirtuação do entendimento do Evangelho.

Jesus nunca disse que os mandamentos têm o mesmo valor. Ao contrário, quando foi perguntado sobre o principal mandamento da Lei, ele respondeu: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento.” (Mateus 22.37-38).

Em outra situação, ao declarar os “ais” dos fariseus, Jesus diz: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas!” (Mateus 23.23).

No texto acima Jesus cita uma lista exemplificativa do que seriam os mais importantes mandamentos da Lei. No versículo seguinte ele afirma: “Guias cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo!” (vs 24). Ele critica a preocupação excessiva dos fariseus com mandamentos subalternos ao comparar esses mandamentos menores a “mosquitos”, que são por eles coados minuciosamente conforme o interesse pessoal deles – o dízimo era de grande interesse, por motivos óbvios. Por outro lado, os mandamentos realmente importantes não eram coados, mas deixados pragmaticamente de lado, no esquecimento.

O que eu observo é que qualquer mandamento que você possa imaginar que exista se ramifica destes “mandamentos principais” que foram citados – eu ainda poderia incluir alguns, mas vamos ficar apenas com os que Jesus citou claramente. Para deixar de forma pedagógica, seguem três exemplos ramificados de cada um dos principais:

- Do amor: não adulterarás, não mentirás, não matarás;
- Da justiça: não roubarás, não darás falso testemunho, não usarás balança enganosa;
- Da misericórdia: acolherás o estrangeiro, ajudarás o órfão e a viúva,
- Da fé: não terás outros deuses, não buscarás adivinhadores, não confiarás na força do teu braço;

Na verdade, muitos desses mandamentos-galhos que se ramificam do mandamento principal poderiam estar em outro mandamento principal, posto que esses mandamentos principais se inter-relacionam. Isso acontece porque os mandamentos principais descrevem/são a essência do próprio Deus.

Observe que os mandamentos subalternos podem variar conforme o tempo e o contexto, mas nunca os mandamentos principais, pois são essência do Deus imutável. Os mandamentos da Lei de Moisés, por exemplo, aplicam-se à realidade daquela época, à consciência daquele povo e aos costumes deles. Por esses e outros motivos, não continuam mais na Nova Aliança (Entenda melhor sobre isso lendo: Afinal, por que a Lei foi dada?).

No entanto, existem mandamentos da Lei de Moisés que continuam hoje, mas não por força da Lei – que foi aniquilada por Cristo na cruz – mas sim por força dos mandamentos principais, que são eternos e imutáveis. Por exemplo, baseado no mandamento/princípio eterno da justiça divina, ainda hoje o mandamento “não matarás” se aplica. No entanto, se aplica não porque a Lei de Moisés ainda tenha força em nossos dias, mas porque o princípio eterno da justiça de Deus nos leva a aplicar esse mandamento em qualquer época.

No Novo Testamento nós encontramos o mandamento “saudai-vos com ósculo santo” (cf. 1 Co 16.20), que nada mais é que uma aplicação circunstancial do princípio do amor – pois era uma forma de mostrar respeito e amor pelos irmãos. No entanto, em nosso contexto a aplicação desse princípio seria um aperto de mão ou um abraço, no máximo. Mas a ordenança letrista do ósculo não tem mais aplicabilidade em nossos dias.

Estou enfatizando e demonstrando a grandeza, imutabilidade, e essência dos mandamentos principais para poder descrever de forma clara o principal problema do não entendimento dessa verdade.

É preciso entender que os mandamentos principais são os responsáveis por gerar valor nos mandamentos subalternos, e não o contrário. Quando não se entende isso, colocam-se os mandamentos subalternos sozinhos, sem valoração divina, o que os torna apenas moralidade vazia.

Foi colocar a Lei do apedrejamento acima dos mandamentos principais do amor, da justiça, da misericórdia, e da fé, que fez com que os fariseus quase apedrejassem a mulher adúltera.

Sempre que a Escritura é usada alheia aos mandamentos principais da essência de Deus, observa-se claramente intenções impuras – que foi justamente o que ocorreu no caso da mulher adúltera. Quando o que gera valor na letra é retirado o texto se des-significa e vira aquilo que Paulo chamou de “letra morta”, um mandamento sem essência divina, sem Deus.

Jesus tentou ensinar isso diversas vezes, especialmente quando curava propositalmente no sábado. Ele poderia escolher qualquer dia da semana para realizar suas curas, mas os textos bíblicos sempre narram: “Jesus, em dia de sábado...”.

Ele queria ensinar que o mandamento de guardar o sábado – que naquela época ainda estava em vigor – se torna letra morta, seca, vazia, quando cumprido em detrimento do mandamento principal do amor. Por isso, ele disse: “Qual dentre vós será o homem que, tendo uma ovelha, e, num sábado, esta cair numa cova, não fará todo o esforço, tirando-a dali? Ora, quanto mais vale um homem que uma ovelha? Logo, é lícito, nos sábados, fazer o bem.” (Mateus 12.11).

Para os fariseus, a letra seca da Lei de Moisés deveria ser cumprida a qualquer custo. Aos olhos deles, era preferível que uma pessoa morresse a ser salva em dia de sábado. Observe que a síndrome farisaica da idolatria à letra morta nasce exatamente nesse ponto: no não-entendimento da necessidade de valoração dos mandamentos subalternos.  

O mandamento subalterno do sábado é sem valor sozinho e gera morte, mas não se for entendido em consonância com o mandamento principal do amor. Aliás, qualquer mandamento subalterno, sozinho, gera morte.

Para visualizarmos melhor esse entendimento, vou aplicá-lo a duas situações clássicas dos nossos dias:

- O mandamento de se manter casado até que a morte os separe;
- O mandamento de manter apenas relações heterossexuais;

Esses dois mandamentos são muito bons para a alma humana quando são cumpridos em consonância com o amor, justiça, misericórdia e fé.  Agora imagine cumprir esses mandamentos a qualquer custo?

- Em algumas igrejas o casal deve se manter casado independente do que esteja acontecendo no casamento. Não importa se há agressões físicas, opressões emocionais, ou falta de amor. Nesses locais, o mandamento seco deve ser cumprido a qualquer custo e o casal deve permanecer casado.

- Na maioria das igrejas o sujeito deve ser heterossexual a qualquer custo. Já conversei pessoalmente com um homem que diz que após fazer sexo com sua mulher, o mesmo precisa ir ao banheiro se lavar, pois sente nojo, mas que precisa continuar vivendo essa mentira por causa da igreja.

Amados, é isso razoável? Jesus diz que os fariseus atavam fardos pesados e difíceis de carregar. Será que não é isso que fazemos em nossas igrejas?

Concluo dizendo que é fácil se tornar um Fariseu, basta colocar os mandamentos subalternos acima dos mandamentos principais. Sim, inverta a ordem e você irá virar um Fariseu rapidinho. E ainda poderá usar a desculpa piedosa de que está “cumprindo a palavra”.

Sim! Foi com a desculpa de “cumprir a palavra” que se cometeram as maiores atrocidades do cristianismo.

- Foi para recuperar a liberdade de acesso dos cristãos à Terra Santa que iniciaram as Cruzadas;
- Foi para se livrar dos hereges que a Igreja Católica instaurou a Santa Inquisição;
- Foi em nome de Deus que o Reformador João Calvino queimou pessoas em Genebra.

Essas atrocidades jamais teriam sido cometidas se eles tivessem entendido que o amor, a justiça, a misericórdia e a fé estão acima de qualquer outro mandamento ou suposta boa intenção. Qualquer pensamento, atitude, ou teologia alheia a esses princípios, se tornará apenas letra morta e não terá valor algum diante de Deus.

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