No
decorrer da história do cristianismo os cristãos têm entendido que os
mandamentos contidos nas Escrituras estão num mesmo patamar de valor, mas eu
gostaria de propor algo diferente. A meu ver, colocar os mandamentos num mesmo
patamar de valoração tem sido um dos principais erros da Igreja e tem sido o
principal responsável pela desvirtuação do entendimento do Evangelho.
Jesus
nunca disse que os mandamentos têm o mesmo valor. Ao contrário, quando foi
perguntado sobre o principal mandamento da Lei, ele respondeu: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu
coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento.” (Mateus
22.37-38).
Em
outra situação, ao declarar os “ais” dos fariseus, Jesus diz: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas,
porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e tendes negligenciado
os preceitos mais importantes da
Lei: a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem
omitir aquelas!” (Mateus 23.23).
No
texto acima Jesus cita uma lista exemplificativa do que seriam os mais
importantes mandamentos da Lei. No versículo seguinte ele afirma: “Guias cegos,
que coais o mosquito e engolis o camelo!” (vs 24). Ele critica a preocupação
excessiva dos fariseus com mandamentos subalternos ao comparar esses
mandamentos menores a “mosquitos”, que são por eles coados minuciosamente
conforme o interesse pessoal deles – o dízimo era de grande interesse, por
motivos óbvios. Por outro lado, os mandamentos realmente importantes não eram coados,
mas deixados pragmaticamente de lado, no esquecimento.
O
que eu observo é que qualquer mandamento que você possa imaginar que exista se
ramifica destes “mandamentos principais” que foram citados – eu ainda poderia
incluir alguns, mas vamos ficar apenas com os que Jesus citou claramente. Para deixar
de forma pedagógica, seguem três exemplos ramificados de cada um dos principais:
-
Do amor: não adulterarás, não mentirás, não matarás;
-
Da justiça: não roubarás, não darás falso testemunho, não usarás balança
enganosa;
-
Da misericórdia: acolherás o estrangeiro, ajudarás o órfão e a viúva,
-
Da fé: não terás outros deuses, não buscarás adivinhadores, não confiarás na
força do teu braço;
Na
verdade, muitos desses mandamentos-galhos que se ramificam do mandamento
principal poderiam estar em outro mandamento principal, posto que esses
mandamentos principais se inter-relacionam. Isso acontece porque os mandamentos
principais descrevem/são a essência do próprio Deus.
Observe
que os mandamentos subalternos podem variar conforme o tempo e o contexto, mas
nunca os mandamentos principais, pois são essência do Deus imutável. Os
mandamentos da Lei de Moisés, por exemplo, aplicam-se à realidade daquela época,
à consciência daquele povo e aos costumes deles. Por esses e outros motivos, não
continuam mais na Nova Aliança (Entenda melhor sobre isso lendo: Afinal, por que a Lei foi dada?).
No
entanto, existem mandamentos da Lei de Moisés que continuam hoje, mas não por
força da Lei – que foi aniquilada por Cristo na cruz – mas sim por força dos
mandamentos principais, que são eternos e imutáveis. Por exemplo, baseado no mandamento/princípio
eterno da justiça divina, ainda hoje o mandamento “não matarás” se
aplica. No entanto, se aplica não porque a Lei de Moisés ainda tenha força em
nossos dias, mas porque o princípio eterno da justiça de Deus nos leva a aplicar
esse mandamento em qualquer época.
No
Novo Testamento nós encontramos o mandamento “saudai-vos com ósculo santo” (cf. 1 Co 16.20), que nada mais é que
uma aplicação circunstancial do princípio do amor – pois era uma forma de
mostrar respeito e amor pelos irmãos. No entanto, em nosso contexto a aplicação
desse princípio seria um aperto de mão ou um abraço, no máximo. Mas a ordenança
letrista do ósculo não tem mais aplicabilidade em nossos dias.
Estou
enfatizando e demonstrando a grandeza, imutabilidade, e essência dos
mandamentos principais para poder descrever de forma clara o principal problema
do não entendimento dessa verdade.
É
preciso entender que os mandamentos
principais são os responsáveis por gerar valor nos mandamentos
subalternos, e não o contrário. Quando não se entende isso, colocam-se os
mandamentos subalternos sozinhos, sem valoração divina, o que os torna apenas
moralidade vazia.
Foi
colocar a Lei do apedrejamento acima dos mandamentos principais do amor, da
justiça, da misericórdia, e da fé, que fez com que os fariseus quase
apedrejassem a mulher adúltera.
Sempre
que a Escritura é usada alheia aos mandamentos principais da essência de Deus,
observa-se claramente intenções impuras – que foi justamente o que ocorreu no
caso da mulher adúltera. Quando o que gera valor na letra é retirado o texto se
des-significa e vira aquilo que Paulo chamou de “letra morta”, um mandamento
sem essência divina, sem Deus.
Jesus
tentou ensinar isso diversas vezes, especialmente quando curava propositalmente
no sábado. Ele poderia escolher qualquer dia da semana para realizar suas curas,
mas os textos bíblicos sempre narram: “Jesus, em dia de sábado...”.
Ele
queria ensinar que o mandamento de guardar o sábado – que naquela época ainda estava
em vigor – se torna letra morta, seca, vazia, quando cumprido em detrimento do
mandamento principal do amor. Por isso, ele disse: “Qual dentre vós será o homem que, tendo uma ovelha, e, num sábado,
esta cair numa cova, não fará todo o esforço, tirando-a dali? Ora, quanto mais
vale um homem que uma ovelha? Logo, é
lícito, nos sábados, fazer o bem.” (Mateus 12.11).
Para
os fariseus, a letra seca da Lei de Moisés deveria ser cumprida a qualquer
custo. Aos olhos deles, era preferível que uma pessoa morresse a ser salva em
dia de sábado. Observe que a síndrome farisaica da idolatria à letra morta
nasce exatamente nesse ponto: no não-entendimento da necessidade de valoração
dos mandamentos subalternos.
O
mandamento subalterno do sábado é sem valor sozinho e gera morte, mas não se
for entendido em consonância com o mandamento principal do amor. Aliás, qualquer
mandamento subalterno, sozinho, gera morte.
Para
visualizarmos melhor esse entendimento, vou aplicá-lo a duas situações
clássicas dos nossos dias:
- O mandamento de se
manter casado até que a morte os separe;
- O mandamento de
manter apenas relações heterossexuais;
Esses
dois mandamentos são muito bons para a alma humana quando são cumpridos em
consonância com o amor, justiça, misericórdia e fé. Agora imagine cumprir esses mandamentos a
qualquer custo?
- Em algumas igrejas o
casal deve se manter casado independente do que esteja acontecendo no
casamento. Não importa se há agressões físicas, opressões emocionais, ou falta
de amor. Nesses locais, o mandamento seco deve ser cumprido a qualquer custo e
o casal deve permanecer casado.
- Na maioria das
igrejas o sujeito deve ser heterossexual a qualquer custo. Já conversei
pessoalmente com um homem que diz que após fazer sexo com sua mulher, o mesmo precisa ir
ao banheiro se lavar, pois sente nojo, mas que precisa continuar vivendo essa
mentira por causa da igreja.
Amados,
é isso razoável? Jesus diz que os fariseus atavam fardos pesados e difíceis de
carregar. Será que não é isso que fazemos em nossas igrejas?
Concluo
dizendo que é fácil se tornar um Fariseu, basta colocar os mandamentos
subalternos acima dos mandamentos principais. Sim, inverta a ordem e você irá
virar um Fariseu rapidinho. E ainda poderá usar a desculpa piedosa de que está “cumprindo
a palavra”.
Sim!
Foi com a desculpa de “cumprir a palavra” que se cometeram as maiores
atrocidades do cristianismo.
- Foi para recuperar a
liberdade de acesso dos cristãos à Terra Santa que iniciaram as Cruzadas;
- Foi para se livrar
dos hereges que a Igreja Católica instaurou a Santa Inquisição;
- Foi em nome de Deus
que o Reformador João Calvino queimou pessoas em Genebra.
Essas atrocidades jamais teriam sido cometidas se eles tivessem entendido que o amor, a justiça, a misericórdia
e a fé estão acima de qualquer outro mandamento ou suposta boa intenção. Qualquer pensamento, atitude, ou teologia alheia a esses princípios, se tornará apenas letra morta e não terá valor algum diante de
Deus.
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